quinta-feira, 12 de agosto de 2010

FLASH NUMINOSO


  Morte de Géricault -1824
Ary Scheffer -Paris, Museé du Louvre  
Carla141
Primeiro sonhei que estava numa casa conhecida apenas dentro do sonho, quando passaram por mim duas crianças parecidas a anjos. Eram dois meninos, com cabelos claros e cacheados, um deveria ter uns dois anos e o outro uns quatro. Pedi-lhes um abraço e o mais velho veio contente abraçar-me. O outro ficou olhando meio parado como se estivesse envergonhado ou sem saber o quê fazer. Logo em seguida eu fui a outro cômodo donde meu pai estava doente, muito mal de saúde, próximo da morte. Havia mais gente no quarto, porém não me atentei para ver as mesmas. Estava sendo preparado um jantar, pois estavam chegando muitas visitas para vê-lo. Meu pai cantava uma música de natal e eu deitei de bruços nos pés da cama e chorei. Como se lembrasse do sonho donde dissera que a idade das crianças era a representação de Deus na Terra, senti que a velhice também tinha esse potencial de representação. Ele estava fraco sobre uma cama e entoava um cântico tão emocionante que derrubava emocionalmente qualquer pessoa que estivesse forte de saúde. Vale explicar que esse contexto do sonho nada tem a ver com a realidade ocorrida no falecimento do meu pai. Depois fui jantar, pois preferia fazê-lo antes da minha irmã chegar.

A significação e presença de enfermos ou dos mortos nos sonhos, para mim, sempre envolve a nossa relação com o absoluto mistério da existência, a relação com o sagrado, a ambivalência entre a existência corpórea e a existência etérea, espiritual ou apenas simbólica.

Reaparecem as crianças e sua disposição afetiva. Continuo pensando em reconciliação consigo mesmo. É um acontecimento especial e essencial, porque com a reconciliação reconstruímos internamente nossa base, estrutura que referendará uma nova forma de relacionar-se com o mundo. E essa nossa base sendo construída a partir de uma relação afetiva harmoniosa consigo e com o mundo, abrirá a possibilidade de constituição de relações harmoniosas, e essencialmente gratificantes, pois construídas com o afeto na comunhão.

A imagem do pai enfermo que entoando cantos que despertam a sua emoção parece-me uma imagem arquetípica. Podemos considerar algumas possibilidades, isto quer dizer que não precisamos ficar presos em um significado, mas todos eles podem ser relevantes:

1. Já disse que o tempo psíquico, e a dimensão de tempo do universo, diferem da grandeza de tempo criado pelo homem. O tempo do homem é uma medida construída para orientar nossa realidade a partir da formação de nossa capacidade transcendental que nos permitiu pensar e apreender, conter, o passado já vivido, o presente que vivemos e o futuro que viveremos.

Mesmo que seu pai já tenha falecido a configuração psíquica não incorporou a sua ausência como morte, seu falecimento não foi configurado, não foi elaborado, apreendido. Isto pode ter ocorrido por defesa, para lhe proteger de descompensação, desestruturação, culpa, ou sofrimento pelo não vivido ou que pudesse lhe deixar lesões psíquicas em decorrência da incapacidade de elaborar, compreender o significado do fato na sua formação, na história da sua relação com seu “Pai”.

Assim a reconstrução da imagem (independente de realidade) do pai enfermo, lhe permite viver a separação, a partida, a despedida, envolvida pelo cântico numinoso, que rompendo as defesas, protetoras, desperta o sentimento, a emoção profunda, e permite-lhe, pelo quadro pintado, sentir e expressar a angústia, envolvida pelo cântico, e viver a dor da separação e da  morte anunciada do Pai;

2. O Cântico de Natal anuncia o nascimento do filho de Deus, o renascimento dos homens, é a pureza da emoção, o Júbilo pela graça, e no sonho é o canto que emociona, porque todos são encantados. O canto que invoca pode significar a diferença entre a capacidade de resistir e viver e a incapacidade de resistir e morrer. Mas no sonho parece-me que ele vem para romper as barreiras e as defesas do afeto, que no seu caso apareciam blindados. Nova consciência se forma abrindo espaço para se relacionar diferentemente com as emoções;

3. O Pai incorporado está enfermo e padece. Precisamos matar o pai, matar a mãe, sem suicidarmos. É preciso matá-los simbolicamente, para que possamos nascer como indivíduos livres, únicos e plenos;

4. O pai convida com o cântico, e mostra que o alvo é a emoção que precisa ser liberada, vivida. E na vida finita do corpo a importância de vivermos o aquilo que realmente importa e que faz sentido, o que é essencial;

5. Pode ser a resposta para a origem de sua passionalidade e emocionalidade, origem paterna;

6. Sinalização para fortalecer a sua resistência emocional, se preparando para os momentos futuros de grande impacto emocional, que são inevitáveis, lhe permitindo evitar que sucumba a estes momentos, ou para diminuir sua suscetibilidade emocional frente ao domínio do “encanto”.

O cântico envolve um efeito numinoso, um estado de encantamento, divino, transcendental, semelhante ao chamado das paixões, ao canto das sereias, que atrai e leva o homem a entrar e desaparecer, à noite, no mar. O encantamento é tão poderoso porque é como se sentimos o impacto de uma conexão especial com o universo. Sabemos que estamos ligados a um espírito universal, e geralmente nos entregamos a essa transcendência. 

E depois você foi jantar porque a vida continua e precisamos nos alimentar para manter acesa a chama viva.

Após momentos numinosos que envolvem tanto poder, magia e emoção, nunca mais somos os mesmos,
a consciência se transforma. e a vida vai cumprindo seus desígnios, porque é assim que a música toca.


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